Segundo a tradição cristã, mormente no Brasil, as árvores de natal e os presépios são desmontados no dia 6 de janeiro. Coincidência ou não, foi em 6 de janeiro de 2021 que extremistas de direita ligados a Donald Trump – entre os invasores, perfilavam grupos de extrema-direita, como o Oath Keepers, o Proud Boys e o QAnon – fizeram enorme e perigosa presepada ao invadir o Capitólio, sede do Legislativo norte-americano, no objetivo de impedir fosse realizada a sessão presidida pelo então vice-presidente Mike Pence e que pretendia confirmar a vitória de Joe Biden naquela eleição.
O ato foi incitado pelo então presidente Trump, através de postagens de ódio e de “fakes news” em suas redes sociais, porquanto ele detinha aquilo que, no jargão político, se conhece como “dog-whistle politics”, ou “política do apito do cachorro”, na versão da língua de Machado de Assis.
A motivação para a tresloucada ação política, inédita nos 245 anos da democracia norte-americana, seriam supostas fraudes nas eleições presidenciais em vários Estados onde Trump perdeu para Biden, valendo lembras que essas alegações vinham sendo trombeteadas pelo próprio meses antes da invasão, porém, todas prontamente repelidas pelas principais autoridades norte-americanas, pela imprensa e entidades da sociedade civil dos Estados Unidos da América.
Curioso que a maior reclamação de Trump foi tocante ao tipo de voto arcaico e inseguro de alguns Estados, os quais têm diferentes e peculiares processos eleitorais, sendo predominante o uso de cédulas de papel postas em urnas de papelão ou de lona, além do voto remetidos pelo Correio, ou seja, inversa da reclamação da extrema-direita brasileira, representada por Jair Bolsonaro, contra o avançado e eficiente sistema de votação implantado pioneiramente, a partir das eleições municipais de 1996, em 57 cidades do Brasil e, mais de três décadas após, passou por enormes transformações que tornou seguros os resultados das eleições que abrangem todos os Municípios brasileiros e até que ocorrem nas representações diplomáticas brasileiras no exterior.
Decerto igualmente “estimulado pelo interesse que a ‘melancólica trajetória nacional’ contemporânea como dizia o também saudoso Francisco Iglésias suscita”, segundo assertiva de Carlos Fico, no texto “Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar” (
https://shorturl.at/abGP3), escrevo esta reflexão ligeira justo neste 8 de janeiro de 2023, um ano após a presepada brasileira da tentativa de golpe de Estado, com a invasão da Praça dos Três Poderes por uma horda de partidários de Jair Bolsonaro (que curtia um conveniente autoexílio na Flórida), quando o Palácio do Planalto, o prédio do Congresso Nacional e a sede do Supremo Tribunal Federal, sedes dos poderes da Repúblicas, foram barbaramente vandalizados no desiderato de forçar a determinação, pelo Presidente da República, de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) pelas Forças Armadas, conforme regulado na Constituição Federal, em seu artigo 142, pela Lei Complementar nº 97, de 1999, e pelo Decreto nº 3.897, de 2001.
Segundo se obtém do portal do Ministério da Defesa, “realizadas exclusivamente por ordem expressa da Presidência da República, as missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ocorrem nos casos em que há o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves situações de perturbação da ordem”. Essas operações de GLO, que pressupõem a falência de todo o aparato de segurança interno, concedem provisoriamente aos militares das Forças Armadas a faculdade de atuar com poder de polícia até o restabelecimento da normalidade, de modo que as autoridades civis, inclusive o próprio Presidente da República, a depender delas. Político extremamente perspicaz e experiente, sabia o presidente Lula que se determinasse uma GLO, naquele momento, seu governo, sua carreira política e até sua própria vida, estariam seriamente ameaçados e o país poderia mergulhar em mais uma ditadura. Não fez e tomou, auxiliado pelos chefes dos poderes Legislativo e Judiciário, enérgicas e saneadoras providência, sendo a mais significativa delas a intervenção federal na máquina de segurança pública do GDF.
Houvesse a conivência das principais lideranças da Forças Armadas, principalmente da maior delas que é o Exército Brasileiro, imaginavam Bolsonaro e sua entourage, o golpe estaria dado se o presidente Lula propiciasse a realização da GLO para conter a invasão das hordas bolsonaristas naquele Oito de Janeiro que passa à História como a data em que restou inabalada a democracia brasileira.
Claro, setores do Exército, do próprio Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, do Governo e da Polícia Militar do Distrito Federal, mostraram-se coniventes com o plano adredemente traçado pela cúpula bolsonarista, porém, em sendo uma aventura de altíssimo risco e que não teria nenhum apoio internacional de peso, a alta oficialidade, sobretudo, do Exército, preferiu não aderir a ela.
Uma coisa é certa: os tristes acontecimentos ora rememorados não ocorreram por simples acaso, não foram um mero ‘domingo no parque’ de velhinhos e velhinhas “com uma bíblia numa mão e uma bandeira (do Brasil) na outra” como afirmou o próprio Jair Bolsonaro em entrevista à imprensa, mas, foi parte de um plano de golpe de Estado urdido e executado pela cúpula das forças políticas derrotadas no segundo turno das eleições presidenciais de 2022, ademais de serem resultantes da longa e agressiva pregação da extrema-direita bolsonarista contra as instituições democráticas, em especial contra o sistema eleitoral brasileiro, o Superior Tribunal Federal e o Supremo Tribunal Federal.
Aliás, é curioso perceber que o sentimento de ódio externado pelos golpistas do dia 8 de janeiro de 2023 se fez mais presente na depredação do prédio do STF do que no do Congresso e no Palácio do Planalto, porquanto uma das constantes políticas do bolsonarismo é a negação do sistema eleitoral eletrônico adotado no Brasil, aliada aos ataques à Suprema Corte e alguns de seus membros, notadamente os ministros Alexandre de Morais, Luiz Roberto Barroso e Gilmar Mendes, sendo que o primeiro foi dura e publicamente, por diversas vezes e ocasiões, pelo próprio Jair Bolsonaro, a exemplo dos discursos em atos comemorativos do Sete de Setembro na Avenida Paulista, em São Paulo, e na Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, em 2022.
A verdade é que os três magistrados citados, ao lado do senador Flávio Dino, que brevemente vestirá a toga de ministro do Supremo Tribunal Federal, sem sombra de dúvida são bem mais odiados pelos seguidores de Jair Bolsonaro do que mesmo o presidente Luis Inácio Lula da Silva que, no máximo, ocupa um ‘modesto’ 5º lugar nesse ranking.
A propósito, não é demais recordar, também, as ameaças feitas pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro que disse, antes do primeiro turno das eleições de 2018, que pagaria para ver se o STF teria coragem para impedir a candidatura do pai, Jair Bolsonaro, terminando por afirmar: “Eu não acho isso improvável, não. Mas aí vai ter que pagar para ver. Será que eles vão ter essa força mesmo? O pessoal até brinca lá: se quiser fechar o STF, você sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo. Não é querer desmerecer o soldado e o cabo não”.
Por essas e outras é que o ódio espargido pelos partidários de Jair Bolsonaro, na choldra de 8 de janeiro de 2023, com quebradeira, destruição, incêndio e até fezes diretamente excretadas na mesa de trabalho do ministro Alexandre de Morais, atingiu mais pesadamente o prédio do STF. Aliás, em recente entrevista em rede nacional, o mesmo ministro Alexandre de Morais fez gravíssimas revelações, baseado em elementos colhidos pela Polícia Federal em investigação na sede das Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), segundo as quais a intenção dos mentores do golpe seria assassiná-lo, ou mediante sequestro/desaparecimento ou, pasmem, por enforcamento em frente ao STF, claro, se o golpe tivesse sucesso. A ABIN teria participação ativa no complô, cabendo-lhe monitorar algumas centenas de autoridades públicas e informar o momento certo para a captura, sobretudo, do magistrado antes referido, para colimar o sinistro plano.
Um ano após os atos golpistas de 8 de janeiro, quando as sedes dos Três Poderes da República foram invadidas e depredadas em Brasília, 1.413 pessoas já foram denunciadas pela Procuradoria-Geral da República (PGR), na condição de executores desses autos, dos quais 30 já foram condenados a penas que vão até 17 anos de reclusão, a exemplo do entregador paranaense Matheus Lima de Carvalho Lázaro, de 24 anos, cuja sentença penal condenatória até já transitou em julgado.
O STF continuará apreciando as ações penais em curso, embora tendo como alvo, até agora, os peixes miúdos; espera-se o tacão da Justiça recaia nos peixões graúdos, aqueles que financiaram e pagaram as pesadas despesas necessárias à complexa logística dos acampamentos em frente aos quartéis do Exército e do próprio golpe.
Esses devem ter penas mais pesadas do que os baderneiros-executores do golpe de Oito de Janeiro, vão pagar e é dobrado “cada lágrima rolada” dos olhos desta nação, para lembrar a canção de Chico Buarque, até que chega àquele que efetivamente tem o “apito do cachorro”, o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, com o qual comandou as malta golpista e suas devastadoras ações, no Oito de Janeiro, com a depredação das sedes dos poderes da República e que quase apunhalavam de morte a democracia que o povo brasileiro, com tantos sacrifícios e sangue de suas filhas e filhos, tem ousado erigir como permanente legado e indeclinável conquista da brava gente destes tantos Brasis.
Os sicários da democracia brasileira, seja aquele usou remotamente o apito de cachorro e as bestas por ele açuladas, não passaram, no Oito de Janeiro, nem passarão no futuro luminoso que nos espera, se vigilante a sociedade brasileira estiver, sempre. A democracia brasileira pulsa e vive. Inabalada. Viva o Brasil!