Por Maria Zenaide Valdivino da Silva.
Professora, Doutora em Linguística Aplicada, Membro da Academia Iracemense de Letras e Artes (AILA), ocupante da Cadeira nº 35.
Texto publicado originalmente no último dia 17 no site da AILA.
Antes de iniciar a escrita desse texto, fiquei pensando em quê, exatamente, eu gostaria de dizer aos meus alunos e minhas alunas, se eu tivesse que falar, abertamente, a eles o que eu penso desse cenário brasileiro a 13 dias do segundo turno de uma eleição que pode definir os próximos anos e o futuro de outras gerações. Sem paixões políticas, mas procurando não ignorar os fatos e a história do nosso país, vou descrever um pouco a minha percepção, desde que ouvi e li o nome DEMOCRACIA, pela primeira vez.
Eu não tenho idade suficiente para dizer que fui testemunha da ditadura militar. Foi na educação básica, na segunda metade da década de 90, como estudante da Escola pública, em Iracema-CE, que eu comecei a estudar e a ler sobre esse assunto que, na época, achei fascinante! Um livro didático de História, de folhas frágeis e “amareladas”, distribuído aos alunos pelo Governo do Ceará era a via desse conhecimento. Alguns exemplares do livro eram sorteados, já que não tinha um número suficiente que contemplasse todos os alunos e todas as alunas e que possibilitasse levá-lo para casa. Eu, que nunca tive muita sorte em sorteio, também não havia tido naquele. Era emprestado da biblioteca e devolvido, sempre ao final de cada aula, para que outros alunos e outras alunos o usassem depois. Lembro disso perfeitamente! Lembro de a professora ter ficado sensibilizada por eu não ter sido sorteada. “Você queria tanto”! Mas sorteio é sorteio.
O tema me fascinava por vários motivos: era inspirador ver aqueles jovens e aquelas jovens resistindo ao militarismo, ver a maneira como eles e elas tentavam, algumas vezes com sucesso, salvar-se dos seus algozes; ver artistas produzirem poesias, músicas e muitas outras obras primas cheias de significados, de informações, de sonhos, que me emocionavam ler/visualizar nas fotografias do livro (em preto e branco, como era impresso); imaginar que aquilo realmente havia acontecido e que parecia tão distante da minha realidade!; refletir sobre como era possível que alguém apoiasse aquele governo truculento. Como alguém pôde? E aquelas pessoas que cumpriam as ordens e torturavam outras pessoas, sobretudo mulheres? Eu pensava: eles não tinham mães, irmãs? Será que eles sabiam/entendiam que estavam jogando no mesmo time do opressor? Não fazia muito sentido que aquelas pessoas da mesma classe passassem a se ver como inimigos. E não vou nem fazer essa discussão pensando o cenário internacional e descrever quão grande era a minha surpresa ao saber que Pinochet e Hitler tinham apoiadores.
Fascinava-me o fim da ditadura e o enaltecer de uma palavra que me soava (e soa até hoje) linda: DEMOCRACIA – o poder emana do povo. Olha essa definição! Os meus olhos brilhavam. Naquele momento, me senti POVO. Quis estar ali, naquelas fotografias. Mas agradeci por não estar, por me enxergar colhendo os frutos daquela luta bem anterior a mim, que causou o sangue de tantos brasileiros e brasileiras. Vivíamos uma nova era, embora ainda não tão democrática nas oportunidades, nas possibilidades e nas inclusões, mas, pelo menos, com expectativas e com esperança de um futuro bem diferente do que mostravam as páginas daquele livro.
Hoje, depois de ampliadas as oportunidades e as possibilidades, tenho uma formação acadêmica que vai além daquela série e que me dá a chance de levar outros alunos e outras alunas a conquistarem outros níveis de formação e de letramentos. Sempre foi assim? Quero dizer a eles e a elas que NÃO. Muitos deles e delas só conhecem a realidade dos últimos anos: LIBERDADE em sua mais genuína acepção; liberdade de expressão; imprensa livre; universidades e institutos federais com ótimas estruturas nos interiores do país (eu disse nos interiores!); cotas raciais e sociais que democratizaram a educação superior; bolsas de Iniciação Científica; bolsas de mestrado e de doutorado ampliadas (pelo menos até um dia desses, há uns seis anos); cursos de mestrado e de doutorado também interiorizados. Repito: sempre foi assim? NÃO! É isso o que eu mais gostaria de mostrar aos meus alunos e às minhas alunas.
Nós, que viemos e somos produtos dessa realidade de ascensão da educação pública, já sentimos, nos últimos anos, o impacto das perdas. Nós, da universidade pública, mais do que ninguém, sentimos os cortes no orçamento da educação; a limitação no investimento; a desvalorização e o impedimento no desenvolvimento de letramentos vitais à vida do/da jovem que vive ou deveria viver a era da informatização, das tecnologias digitais. Eu vivo, dia após dia, o desafio de continuar essa missão. Com tanto retrocesso, continuar atuando na pós-graduação, por exemplo, tem sido um ato de resistência, uma luta externa e também interna, pelo menos para mim.
Vou citar aqui um manifesto publicado na cidade de Novas Londres, nos Estados Unidos, em 1996, que propõe que a escola desenvolva uma “Pedagogia dos Multiletramentos”. Um grupo de grandes estudiosos de várias partes do mundo preocupado com questões sociais reais se baseia na ideia de que o aluno e a aluna precisa estar preparado e preparada para os desafios da globalização, que demanda respeito às diferentes culturas e às diferentes formas de comunicar-se. O manifesto publicado pelo grupo defende a necessidade de aprendermos e ensinarmos sobre como negociar essas diferenças, com respeito e empatia. Levantam a questão de como a escola pode tornar-se cada vez mais democrática, mais inclusiva, e sobre como os alunos e as alunas podem aprender a ler o mundo (como o nosso patrono Paulo Freire já antecipou) de forma mais crítica, mais ativa e mais transformadora, considerando – e aí está a inovação das ideias do grupo – as mudanças ocorridas na linguagem, na comunicação e que devem ocorrer, também, no ensino. Sabemos (nós que temos acesso às leituras) que as formas de ler e de produzir sentidos mudou drasticamente, sobretudo, com o advento das tecnologias digitais. Assim, todas as pessoas precisam aprender sobre como agir nesse novo mundo e, não menos importante, sobre como defender-se dele. Nesse contexto, aparecem as lutas de classe, as relações de poder extremamente conflituosas e as desigualdades sustentadas por e materializadas nessas linguagens.
Dessa maneira, e para resumir, os (multi)letramentos são sociais e ultrapassam sobremaneira a decodificação e a aprendizagem na base da palavra isolada, fragmentada, acrítica, descontextualizada e inútil para a cidadania, como é a pedagogia restrita a juntar letras para aprender o som delas. Não é só enfadonho um ensino desse. É também ineficaz e insuficiente, tratando-se de um país de oportunidades tão desiguais, o que ficou escancarado com o ensino remoto, durante a pandemia da COVID-19. Essa ideia é até uma afronta a quem estuda e pesquisa pedagogias que transgridam o ensino tradicional limitado, que nada contribui para o engajamento do/a aluno/a nas diversas esferas sociais das quais participa. Sobre isso, recomendo a leitura de um artigo publicado na revista Diálogo das Letras (UERN), de autoria da linguista Ana Elisa Ribeiro (2020), professora e pesquisadora do CEFET-MG, que relaciona com maestria a Pedagogia dos Multiletramentos do Grupo de Nova Londres (1996), com o ensino brasileiro em tempo pandêmico, mostrando como, em 2020, ainda estávamos aquém de uma proposta que começou em outros lugares do mundo, na década de 90.
Entendamos que não adiantam aplicativos sem a devida democratização de ferramentas indispensáveis ao seu uso e apropriação, sem a devida formação de professores, sem uma estrutura mínima para a prática, sem dar a oportunidade de refletir, de pensar sobre sua condição e inserção em um dado contexto e em uma dada cultura. Paulo Freire (2011), um dos teóricos mais estudados do mundo, levantou essa questão, estando muito à frente do seu tempo. No entanto, ele é, até hoje, atacado por quem desconhece suas obras, por quem tem preguiça de ler, de compreender e de aprofundar-se em seus pensamentos. DEMOCRACIA não é apenas ter o direito votar nas eleições. É também ter oportunidade e acesso ao conhecimento.
Ao que parece, o Brasil pode decidir pela retomada do avanço na educação, na escola, nas oportunidades, no desenvolvimento dos múltiplos letramentos de que precisamos TODOS e TODAS. A meta deve ser, como diria o Lemke (2010), ajudar essa geração a aprender a usar sabiamente os letramentos e esperar que eles se saiam melhor do que nós. Não podemos deixar que eles sejam os analfabetos do futuro. Ou vamos mesmo regredir mais alguns anos? Iremos trocar a evolução pelo conservadorismo que NUNCA levou país nenhum ao futuro? A quem interessa que, de fato, nos tornemos analfabetos ou iletrados? A quem interessa que seja cerceada a nossa liberdade?
Voltando àquelas minhas inquietações de menina de escola, hoje, eu vejo clara e assustadoramente, que é possível, sim, que tanta gente ao nosso redor queira esse Brasil violento, odioso, preconceituoso e deliberadamente desrespeitoso à diferença de ideias, à diferença de culturas e à diferença de formas de vida, logo em um país tão lindamente diverso! Quando iniciei aquelas leituras, era inimaginável, para mim, que o Brasil vivia aquela época com o apoio de muitos de nós. Hoje, infelizmente, eu consigo até imaginar quem me denunciaria. Era desconexo demais saber que trabalhadores e trabalhadoras daquela época eram coautores e coautoras de todas aquelas monstruosidades. Hoje, ainda é. E muito se repete!
É difícil dizer, mas, para alguns dos colegas de escola que leram aquele mesmo livro que eu – com um capítulo riquíssimo sobre a Ditadura no Brasil pensado para aquele nível – e até para a professora que me passou aquela lição, tudo não passou de ficção. É frustrante saber que algumas pessoas de quem gostamos e a quem admiramos agem como se estivessem anestesiadas. Em alguns momentos, agem como se até o que estamos vivendo agora, em 2022, fosse ficção. Eu gostaria muito que esses colegas e essa professora lessem esse texto e escolhessem juntar-se a esse lado, que sempre foi o lado deles, embora não se reconheçam como parte, tomados por um sentimento ininteligível demais para mim.
Por fim, lembro que daqui a 13 dias, teremos a oportunidade de decidir virar mais um capítulo dramático da nossa história. Se isso acontecer, teremos outros livros de História para distribuir nas escolas públicas, socializando democraticamente o que ocorreu, com páginas de alta qualidade, coloridas, distribuídas a todos os alunos e a todas as alunas, sem necessidade da realização de sorteio, numa abordagem lamentavelmente exclusiva. Já vivemos isso durante 13 anos, em que nunca antes, na história do Brasil, avançamos tanto em educação, em seu amplo significado. Do contrário, não há como prever quais e como serão os livros para as futuras gerações. É um “tiro” dado no escuro. E eu não sei vocês, mas eu quero estar bem longe de onde se fala em tiro, em tortura, em morte.
VIVA A ESCOLA PÚBLICA! VIVAM OS LIVROS QUE EMANCIPAM! VIVA A DEMOCRACIA BRASILEIRA! Viva hoje, amanhã e sempre a nossa aspiração de defendê-la e de lutar por ela, apesar de todas as “armas” usadas contra.
Iracema-CE, aos 17 de outubro de 2022.
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RIBEIRO, A. E. Que futuros redesenhamos? Uma releitura do manifesto da Pedagogia dos Multiletramentos e seus ecos no Brasil para o século XXI. Diálogo das Letras, Pau dos Ferros, v. 9, p. 1-19, e02011, 2020.
LEMKE, J. L. Letramento Metamidiático: Transformando significados e mídias. Trabalhos em Linguística Aplicada, vol. 49, no. 2, p. 455-479, Jul./Dez. 2010 (Artigo traduzido com autorização do autor).
FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 51 ed. São Paulo: Cortez, 2011.
THE NEW LONDON GROUP. A Pedagogy of Multiliteracies: Designing Social Futures. Harvard Educational Review. 1996. p. 60-93. Disponível em https://meridian.allenpress.com/her/article-abstract/66/1/60/31673/A-Pedagogy-of-Multiliteracies-Designing-Social?redirectedFrom=fulltext
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