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De esperanças perdidas
Por Paulo Afonso Linhares
(Doutor em Direito, advogado, professor universitário aposentado e diretor-presidente da Rádio Difusora de Mossoró).
Entristecer-se do bem divino, ou “acídia”, um dos sete pecados capitais no contexto da teologia cristã, refere-se à sensação de tristeza e insatisfação com as coisas boas e divinas, como a fé, a esperança e o amor de Deus. É uma espécie de apatia espiritual, em que a pessoa se sente aborrecida e desanimada em relação à sua ligação com o divino, podendo até mesmo se sentir desalentada diante das bênçãos e dons que Deus lhe concede. A acídia, segundo Santo Tomás de Aquino, é uma tristeza particular que leva à apatia, afetando especificamente o desejo de Deus e das coisas divinas.
Padre Antônio Vieira, no impagável “Sermão das Armas de Portugal contra as de Holanda”, proferido na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, na Bahia (hoje Salvador), em 1640, argui, diante do próprio Deus, de sua mais ampla paixão, um vigoroso argumento de que o abandono dos que defendiam a fé cristã nestes trópicos era uma infâmia. E coroava sua veemente invectiva com a afirmação: “Não hei de pedir pedindo, senão protestando e argumentando; pois esta é a licença e liberdade que tem quem não pede favor, senão justiça.”Acídia brilhante parida do espírito desse que foi maior orador sacro de que se tem notícia.
Sem dúvida, essas palavras do grande Vieira, em confronto direto com a divindade, têm um tom de forte acídia, sentimento cada vez mais presente nos corações e mentes das pessoas que, no dia a dia de suas comunidades, nos tempos em que vivemos, lutam e trabalham por uma vida digna, referida a um conjunto de valores sedimentados no devenir civilizatório — ao longo de muitos milênios de evolução — porém entremeado de monumentais retrocessos.
Veja-se, por exemplo, o que enfrentam as evoluídas sociedades em rede, nestes ásperos tempos de agora: apesar da apropriação cada vez mais eficiente dos recursos materiais, propiciada por enormes avanços científicos e tecnológicos, povos e nações experimentam amargos e enormes desafios diante da corrosão de ideais e valores morais que, pensava-se, seriam marcos definitivos e inabaláveis da civilização.
Tomando-se por base o ano de 1945, há exatos 70 anos, a humanidade superava os horrores de um conflito de proporções planetárias — a Segunda Guerra Mundial. Cenários terríveis como os de Hiroshima e Nagasaki, a crueldade do Holocausto, o assassinato coletivo de toda a população da pequena Guernica apenas para testar o poderio da Luftwaffe, a então nova máquina de guerra aérea alemã — somente para colacionar alguns exemplos — compuseram o enorme sorvedouro que tragou mais de 70 milhões de vidas.
Os países vencedores de 1945 impuseram uma nova ordem mundial ancorada no resgate de olvidados valores iluministas, reunidos no tríplice dístico liberdade-igualdade-fraternidade, além da adoção de novos paradigmas, como o direito de todos os povos ao desenvolvimento, à preservação do meio ambiente, do patrimônio histórico, artístico e paisagístico da humanidade, ao direito à paz e à segurança, ao direito à comunicação e à informação, entre outros que passariam a regular inúmeras atividades humanas.
E tudo sob a mediação de organismos multilaterais, como a Organização das Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional, a Organização Mundial do Comércio, a Organização Mundial da Saúde, entre outros, cujas tarefas seriam a concretização do enorme arcabouço jurídico-político erigido a partir de conferências e acordos celebrados pela maioria dos Estados soberanos existentes.
É bem certo que, ao lado desses avanços da humanidade, permaneceram vivas as sementes da discórdia, da ambição, das guerras, da destruição do meio ambiente e do patrimônio comum e, sobretudo, das diversas e cruéis modalidades de desrespeito à condição humana. Assim, poucos anos após 1945, começou o novo tormento da Guerra Fria, marcada pelo terror de um novo conflito planetário com armas atômicas, que impôs uma divisão do mundo entre duas das grandes potências que derrotaram o nazifascismo: os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
No caudal dessa colossal arenga, explodiram sangrentos conflitos regionais em praticamente todos os continentes, prevaleceram governos autocráticos, houve retomada de regimes de segregação racial e, pasmem, de abjetas práticas de “limpeza étnica”, nada diferentes do que fizeram os nazistas com seus campos de extermínio ou o imperialismo japonês em vasta região da Ásia. Tudo com o tétrico pano de fundo das renovadas formas de violação dos direitos humanos e da soberania de Estados nacionais.
No final deste primeiro quartel do século XXI, verifica-se, com tristeza, que, a despeito dos avanços científicos e tecnológicos, do acelerado desenvolvimento econômico e da maior compreensão acerca das questões cruciais das sociedades e dos povos, o esgarçamento dos ideais e valores retomados ou erigidos depois da Segunda Guerra Mundial, em escala global, é inequívoco.
Acrescente-se a isso, ainda, as recentes vitórias de projetos políticos autocráticos, a exemplo do que ocorre neste momento com os Estados Unidos da América sob o comando do déspota Donald Trump e suas inacreditáveis bizarrices, que vão das perseguições aos imigrantes que vivem naquele país ao ataque brutal às instituições acadêmicas do porte da Harvard University — certamente o mais renomado templo do saber neste mundo globalizado. O presidente norte-americano remeteu correspondências a todos os órgãos da administração federal no sentido de revogar todos os contratos com essa instituição, em valores que superam 100 milhões de dólares anuais. Por absurdo que seja, Trump acusa a Harvard de “conduta pró-terrorismo”. Sem palavras.
Estarrece o mundo, também, neste momento, o genocídio promovido pelo Estado de Israel na Faixa de Gaza, com ameaças à população palestina. Segundo dados divulgados pela rede CNN, “autoridades de saúde palestinas dizem que a campanha terrestre e aérea de Israel em Gaza matou mais de 38 mil pessoas, a maioria civis, e expulsou a maior parte dos 2,3 milhões de habitantes do território de suas casas.” O paradoxo judaico: o povo vítima do Holocausto — um terrível caso de genocídio — presencia a ação genocida do Estado judeu, dominado por extremistas ultraconservadores.
Enfim, por todos os lados, o que se observa é a suplantação dos valores civilizatórios pela barbárie, o que leva à perda da esperança e à descrença das pessoas acerca de seu futuro e, lamentavelmente, de seu vínculo com o divino — algo que remete àquela conhecida acídia cunhada pelo maior dos nossos poetas, Castro Alves, na última estrofe do Canto V, do poema “O Navio Negreiro”:
“Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!…
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!…”
Foto: Reprodução
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